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​​​​​​​A difícil (e necessária) relação entre Direito e Política

No texto “Os Bacharéis”, escrito na forma de peça teatral, Simões Lopes Neto e José Gomes Mendes contam a história de um casamento que não acontece devido a alegação de um impedimento. A pequena comunidade (do texto) que vivencia o anúncio do amor interrompido até inicialmente desconfia da existência da impossibilidade proclamada. Mas, não. Ela foi contada pelo Bacharel. Ele estudou Direito. Ele explica a situação em palavras diferenciadas, cultas, com conceitos próprios, que, claro, eles não entendem, mas, porque ele – o Bacharel – sabe, confiam. Ao “noivo frustrado” – aquele que não pôde casar –, resta-lhe aceitar. E o que mais? Estudar Direito. Afinal, como desfazer o impedimento senão pelas palavras confiantes de um outro Bacharel?

O livro mencionado acima instiga diferentes reflexões jurídicas. Poderíamos discutir o surgimento das Faculdades de Direito no Brasil e como isso esteve atrelado a um status e à formação de quadros burocráticos, algo que podemos encontrar na obra “O Direito na História”, de José Reinaldo de Lima Lopes. Poderíamos falar da cultura do bacharelismo, lembrando de Sérgio Adorno e seu “Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na política brasileira”. Seria possível, também, pensar sobre o problema dos conceitos jurídicos, que muitas vezes se descolam da realidade, tornando-se um amontoado de palavras bem organizadas que pouco comunicam à sociedade.

Acontece que, nesta semana, fui convidada pela ABDPro para, como palestrante no “I Congresso Brasileiro de Direito Processual Garantista – Poder Judiciário, Processo e Democracia”, pensar sobre a seguinte pergunta: “Os precedentes obrigatórios concorrem com a lei? É preciso democratizar a corte que os produz? Como?” E, então, ao refletir sobre isso, lembrei de uma pergunta que abriu uma grande e qualificada discussão durante um das minhas aulas do curso de Mestrado do PPG Direito da Unisinos: por que, afinal, o Judiciário “pode” tanto?

O questionamento que me foi colocado pela organização do Congresso cria um desafio: o de estabelecer o elo – a convivência harmônica no sistema jurídico brasileiro – entre Judiciário, precedentes, lei e democracia. E, ao fazer isso deixa implícita, através da ideia de concorrência, a contraposição entre Legislativo e Judiciário; vontade da maioria e contramajoritarismo; Política e Direito. E é, então, que a opereta “Os Bacharéis”, a discussão da minha aula e meus pensamentos sobre este questionamento colocado por ocasião do Congresso se encontram.

Há uma sensível diferença entre a escolha política e a tomada de decisão jurídica (judicial). Lenio Streck enfatizaria, aqui, o aspecto da discricionariedade, que, realmente, é central para o tema. Entretanto, gostaria de direcionar o olhar para outro ponto, que diz respeito à legitimidade. O processo de construção da legitimidade da atuação do Judiciário exige um empenho muito maior, que depende (quase exclusivamente) da responsabilidade desta instituição e da atuação de seus atores. E não apenas porque juízes não são eleitos por voto popular. Mas porque o próprio devido processo legislativo possui caminhos institucionais, para além do voto, que fomentam a construção da legitimidade de sua atuação – via representatividade – através de um complexo trâmite. E, aí sim, se o povo não gostar das matérias e assuntos que deram corpo a este caminho, em quatro anos, ele tem a possibilidade de modificar este quadro, alterando sua composição nas próximas eleições.

Toda articulação, toda tensão e contraposição políticas que envolvem a produção de uma lei é democracia por excelência. Mas, para além dos bastidores políticos, todo o trâmite, com Casa Iniciadora (que geralmente é a Câmara dos Deputados), papel das Comissões temáticas, da CCJ, possibilidade de emendamento, discussão, votação, remessa para a Casa Revisora (regra geral, Senado Federal), repetindo-se tudo de novo, tudo isso é democracia. Ou seja, a própria trilha institucional (os procedimentos) para a aprovação de uma lei tornam a democracia possível. Sem negar todo o tipo de corrupção (lato sensu) que pode existir durante o trâmite de um projeto de lei. Sem negar as demandas não atendidas pelo Legislativo. Sem negar a existência do “não me representam”. Mas, sem negar tudo isso, é possível dizer que, para além da eleição popular, via procedimento, a própria Constituição estabelece a trilha da democracia.

Com o Judiciário não é assim. Uma decisão mal fundamentada, uma decisão errada, ainda assim, “vale”. O que isso significa? Que o Judiciário pode – mas não deveria – construir sua legitimidade via autoridade, sem um movimento dialógico – e até, mesmo, através de um posicionamento monocrático. E, como mesmo afirma Hannah Arendt, autoridade significa um “reconhecimento inquestionável por aqueles a quem se pede obediência”[1]. A mesma autoridade que possuiu o Bacharel para impedir o casamento. Aliás, é justamente a partir disso que construo minha tese de doutorado, afirmando que, em determinado contexto, naturaliza-se a ideia de supremacia judicial no Brasil, através da concessão de três autoridades ao Supremo Tribunal Federal, como monopólios – interpretativa, política e simbólica. Martin Shapiro, ao tratar do tema da legitimidade das instituições que compõem os três Poderes, faz a seguinte afirmação:

Em estados democráticos, a maioria das autoridades do governo (legislativo e executivo) ganha legitimidade através de uma autorização política e de sua submissão ao povo através das eleições (ou responsabilidade perante os seus eleitores). Os juízes, no entanto, justificam sua legitimidade afirmando que eles são não políticos, independentes e servos neutros da lei. Ao contrário dos órgãos democráticos do aparato estatal, as cortes alcançam sua legitimidade alegando ser algo que elas não são.[2]

A passagem é provocativa. Afinal, se não é pela premissa majoritária, como a atuação do Judiciário ganha legitimidade? Como a democracia se relaciona com o exercício da jurisdição? A atuação de juízes e tribunais devem espelhar democracia; deve refletir democracia. Isso envolve aquilo que Lenio Streck chama de respeito ao certo DNA que possui o Direito, a uma tradição. Uma tradição que tem, sim, autoridade. Só que uma autoridade construída sobre solo democrático. Talvez seja este o grande diálogo que deve conectar a relação Direito e Política.

 

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